sexta-feira, 25 de março de 2016

Johan Cruyff colocou a Holanda no mapa do futebol mundial

Ah, antes de Baggio houvera Silvio Piola, Giuseppe Meazza, Giampiero Boniperti, Gigi Riva…
Claro, houve gente da Holanda que tratou bem a bola antes dele. Mas nenhum (ressalte-se: NENHUM) com a capacidade de pensar sobre o jogo, colocar em prática um estilo de jogar futebol que marcasse tanto um país, que criasse raízes tão fundas, até hoje seguidas de um modo ou de outro pelos clubes e pelas seleções holandesas depois dele. Por isso, é justo dizer: não havia futebol holandês, não havia seleção holandesa antes de Hendrik Johannes Cruyff, falecido nesta quinta aos 68 anos, vestir a camiseta laranja.
Tão logo colocou profissionalmente a camiseta alvirrubra do seu Ajax, em 1964, Cruyff começou a correr. Talvez para recuperar o tempo perdido de um problema físico que o impedira de andar, na infância. Talvez para se vingar de um dos principais traumas do destino: a morte de seu pai, em 1957, vítima de um ataque cardíaco. Com a habilidade maturada nas ruas de Amsterdã e na escolinha do Ajax, “Jopie” (seu apelido de infância) não demorou a marcar época. Veloz e técnico ao mesmo tempo.
Tanto é que marcou golo na sua estreia pelos profissionais do Ajax – o único do clube na derrota por 3 a 1 para o GVAV, pelo Campeonato Holandês, ainda com o inglês Vic Buckingham como o treinador. Em 1965, chegou aquele que seria seu mestre, o sujeito que exigiria demais dele – mas também o trataria como seu pupilo, numa relação de amor e ódio: Rinus Michels. Que faria de Cruyff o  ponto principal, o “primus inter pares”, o craque entre craques, o personagem a ajudá-lo em campo no caminho que levou o Ajax a se transformar num clube lendário no futebol europeu e mundial.
E também ficou marcada desde cedo a irascibilidade do génio. Basta mencionar sua primeira partida pela seleção holandesa, em 7 de setembro de 1966, contra a Hungria, num amistoso. Ele já marcou o primeiro de seus 33 golos pela Oranje. Mas também foi o primeiro jogador da história da equipe nacional holandesa a ser expulso de campo. Afetou tanto sua imagem que recebeu uma suspensão de um ano. Mas, tão logo voltou, viu-se que não se poderia prescindir daquele jogador único.
E único não só dentro de campo. Sua parceria com o sogro Cor Coster (sogro a partir de 1968, após o casamento com Danny) o transformou no primeiro jogador holandês a capitalizar em cima da própria imagem naquele futebol de riqueza crescente. Cada patrocínio, cada camisa que vestia, cada produto que propagandeava: tudo rendia a Johan milhares de florins, a moeda holandesa antes do euro. Vale dizer: Cruyff não era só um símbolo do futebol holandês, era um símbolo da mudança da sociedade holandesa nos anos 1960.
E tudo isso – seu brilhantismo dentro de campo, seu temperamento fortíssimo, sua capacidade para promover sua imagem – foi visto no início dos anos 1970. No Ajax, como já dito, ele foi o personagem principal daquela equipe que colocou os Ajacieden no mapa, com o tricampeonato da Copa dos Campeões, mais Mundial Interclubes de 1972 (nos outros anos, o Ajax declinou da participação), três títulos holandeses (1969/70, 1971/72 e 1972/73) e três Copas da Holanda (1969/70, 1970/71 e 1971/72). E também saiu do clube rumo ao Barcelona, em 1973, por… ter perdido a braçadeira de capitão, numa votação do elenco.
Na Oranje, participou das eliminatórias para as Copas de 1970 e 1974. Mas, acima de tudo, teve fundamental papel na decisão de trazer Rinus Michels para o comando da seleção, no início de 1974. E, óbvio, foi o principal interlocutor e principal peça da equipe que assombrou o mundo na Copa daquele ano. De fato, Cruyff merecia cada um dos apelidos que ganhou a partir dali: “Nummer 14” (Número 14), “Pitágoras de chuteiras”, “O salvador” (dado pela torcida do Barcelona, após o título espanhol de 1973/74, encerrando 13 anos de jejum). Enfim, o personagem principal do Totaalvoetbal.
Depois da Copa de 1974, é justo dizer que Cruyff estaria para sempre na história do futebol mundial. Tanto é que seu nome só ganhou o “y” então, para facilitar a leitura do resto do mundo, distanciando-o da grafia holandesa “Cruijff”. Porém, a partir dali seu nome perdeu um pouco de força. Na seleção, uma participação turbulenta na Euro 1976, e a recusa em participar da Copa de 1978. Até hoje, vários motivos são ventilados: a ameaça de sequestro da família, recusa em viajar à Argentina então sob ditadura militar, eventual ordem da mulher após suposta noite passada com prostitutas às vésperas da final de 1974… Enfim, o fato é que Cruyff parou com a Laranja após 48 jogos e 33 golos.
Pior: também sua produtividade pelos clubes caiu. A ponto dele declarar o fim da carreira já em 1978, um dos seus mais melancólicos anos. Na partida de “despedida”, o Ajax encarou o Bayern Munique… e perdeu por 8 a 0, a mais dura derrota da carreira de Cruyff. Mais: carreira encerrada, ele tentou viver dos negócios em Barcelona com o amigo Michel Basilevitch, na criação de porcos e na exportação de vinho, cimento e imóveis. Fracasso, prejuízo e fuga de Basilevitch, deixando Cruyff com seis milhões de florins em débitos variados.
Restou tirar as chuteiras do armário e aceitar ofertas variadas para pagar as dívidas. Na lucrativa NASL, a liga norte-americana da época, passagens pelo Los Angeles Aztecs e pelo Washington Diplomats; um jogo único pelo Milan; um tempo rapidíssimo no Levante-ESP… Mas sua carreira só voltou aos eixos após o retorno ao Ajax, em 1981. Inicialmente, nem era para jogar, mas para auxiliar o treinador Leo Beenhakker. Qual nada: Cruyff voltou e foi personagem fundamental nos títulos holandeses de 1981/82 e 1982/83. Daí, o Ajax acreditou que ele estava “velho”, e não renovou seu contrato. Bastou para a vingança maligna: Cruyff aceitou a proposta do arquirrival Feyenoord, onde conquistou a Eredivisie e a Copa da Holanda na temporada 1983/84.
Carreira encerrada no campo, Cruyff começou no banco de reservas. Treinando o Ajax entre 1985 e 1988, não só levou os Amsterdammers ao título da Recopa europeia, em 1987/88, mas também revelou vários jogadores: os De Boer, Dennis Bergkamp, Sonny Silooy… sem contar gente com quem havia jogado e que ganhou espaço com ele no banco, como Marco van Basten e Frank Rijkaard. Como não poderia deixar de ser, um desentendimento com a direção do Ajax o tirou do clube, em 1988, levando-o ao Barcelona – sua outra casa, o outro clube em que fez história.
Também por sua personalidade irascível é que a federação holandesa nunca o chamou seriamente para treinar a Oranje, coisa que muito se esperou até hoje. E por ela, também, sua relação com o Ajax sempre foi turbulenta – basta citar o projeto natimorto de trabalho com Van Basten quando este assumiu o clube, em 2008, ou a “Revolução de veludo” rachada nesta temporada.
Ainda assim, se a importância de Cruyff no Barcelona é gigante, no futebol holandês ela é ainda maior, definitiva. Basta saber que até livros foram editados com suas frases. “Toda desvantagem tem sua vantagem”; “Os italianos não podem lhe vencer, mas você pode perder para eles”; “Antes de cometer um erro, eu não cometo um erro”… viraram marcas das “Cruijfiaans”, suas tiradas misteriosas e até curiosas.
Mas hoje, neste dia em que a Holanda para, pela perda de um de seus símbolos mundiais (Cruyff foi eleito o sexto holandês mais importante da história do país, numa pesquisa de 2002), basta lembrar duas frases para dimensionar sua importância. A primeira: “Jogar futebol é muito simples, mas jogar o futebol de modo simples é a coisa mais difícil que há”. E a segunda: “Em qualquer sentido, eu provavelmente sou imortal”. Verdade, Johan. Verdade.

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